03/07/2014

Poder público pode interferir em ONGs com novo projeto de parceria, avalia advogado

Apesar de trazer inovações, o projeto de lei que regulamenta parcerias do Poder Público com as ONGs, aprovado na última quarta-feira, 2 de julho, pelo Plenário da Câmara, tem recebido críticas de especialistas. Segundo o advogado Fernando Borges Mânica, o projeto aprovado segue a mesma lógica dos atuais convênios e não “dialoga” com outros modelos de parceria com o Terceiro Setor, como o “Termo de Parceria” e o “Contrato de Gestão”. De acordo com o advogado, além de não resolver algumas das principais falhas da disciplina legal dos convênios, o projeto de lei aprovado prevê a possibilidade irrestrita de ingerência do Poder Público nas ONGs e nas empresas por elas contratadas. Fernando Borges Mânica é Doutor em Direito pela USP, Mestre em Direito pela UFPR, Pós-Graduado em Direito do Terceiro Setor pela FGV-SP; Professor Titular de Direito Administrativo e Coordenador da Pós-Graduação em Direito Administrativo da Universidade Positivo, em Curitiba. Um novo marco legal? Conforme explica Mânica, ainda que seja denominado como “Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil”, o projeto de lei aprovado trata, na verdade, de apenas um aspecto do Terceiro Setor: os convênios. Nesse sentido, o projeto de lei extingue essa figura jurídica (que passa a existir apenas em relações entre duas entidades públicas) e a substitui por dois novos modelos de ajuste: o Termo de Colaboração e o Termo de Fomento. Acontece que, ao disciplinar essas duas novas modalidades de ajuste, o projeto de lei acaba seguindo a mesma lógica daquela hoje vigente para os convênios (prevista no Decreto n. 6.170/07). Pontos positivos do projeto de lei Ainda que a racionalidade seja a mesma, de acordo com Mânica, o projeto de lei traz alguns avanços pontuais, na medida em que reconhece da legalidade de utilização de recursos públicos para pagamento de despesas indiretas (custos administrativos) pelas ONGs; prevê a possibilidade de proposição de projetos pelas próprias entidades privadas; exige que ONGs e seus dirigentes tenham ‘ficha limpa’, como condição para que celebrem parcerias com o Poder Público; disciplina uma nova modalidade de licitação, denominada de 'chamamento público' para a celebração de ajustes com o terceiro setor; exige a publicação, pelo Poder Público, da justificativa da decisão de celebrar cada parceria; e possibilita a celebração de parcerias com ONGs que atuam em rede. Questões não solucionadas Conforme ressalta o especialista, o projeto deixou de disciplinar questões importantes para a segurança jurídica das relações com Terceiro Setor. “Alguns temas foram simplesmente ignorados pelo projeto de lei. Nesse sentido, não há qualquer referência no projeto de lei sobre: a possibilidade (ou não) de remuneração de dirigentes; o dever (ou não) de prestação de contas diretamente aos tribunais de contas; e os prazos máximo e mínimo de duração dos ajustes”, diz o advogado. Além disso, ele aponta uma falha do projeto que considera grave, e que consiste na ausência de diálogo entre ele e as duas outras leis que tratam de parcerias com o terceiro setor: a Lei federal 9.637/98 (Lei das Organizações Sociais) e a Lei federal 9.790/99 (Leis das OSCIP). Com a aprovação do projeto de lei, termos três modelos diferentes de ajuste para objetos similares, disciplinados por três leis que não se relacionam entre si. Esse cenário favorece a insegurança jurídica, avalia Mânica. Burocratização Ainda que o objetivo do projeto de lei seja o de desburocratizar a relação entre as ONGs e o Poder Público, segundo Fernando Mânica, o processo que passa a ser exigido para a celebração de parceria com as ONGs, denominado de ‘chamamento público’, acabou ficando mais burocrático e complexo que a própria lei de licitações. “É evidente que a lei de licitações de contratos não é adequada para a escolha de projetos a serem realizados por ONGs, mas o procedimento de escolha das ONGs parceiras deve dar mais ênfase no mérito e no custo do projeto, ao invés de centrar-se em questões formais, como consta do projeto”, avalia. Além disso, ele acha que são exageradas as exigências quanto à forma de aplicação dos recursos bem como as limitações para o gerenciamento dos valores repassados. Essa ingerência estatal prejudica muito a atuação das entidades, tornando sua atuação engessada e incapaz de executar projetos de maior complexidade. O grave risco da ingerência estatal “A ingerência prevista na lei é tamanha que se chegou ao absurdo de determinar, no artigo 42, que haja livre acesso dos servidores dos órgãos ou das entidades públicas repassadoras dos recursos, do controle interno e do Tribunal de Contas aos processos, aos documentos, às informações referentes aos instrumentos de transferência disciplinados pela lei”, critica o advogado. Essa previsão, segundo Mânica, confere um cheque em branco para que o Poder Público se intrometa na atuação das entidades parceiras e também das empresas que prestam serviços. Isso porque a previsão aplica-se também às empresas eventualmente contratadas pelas ONGs para determinados serviços. Ou seja, tanto a ONG quanto suas prestadoras de serviços tornam-se território de livre acesso para servidores públicos. Essa determinação legal parte de uma premissa equivocada de que todas as entidades são corruptas, fantasmas e inescrupulosas. A previsão de livre acesso de servidores do Estado em entidades privadas revela uma faceta autoritária típica do período ditatorial. O controle das ONGs parceiras do Poder Público deve ocorrer, mas deve acontecer, como diz o próprio projeto de lei em seu artigo 6º, com o foco nos resultados e na boa aplicação dos recursos.

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